http://blogs.estadao.com.br/sp-no-diva/as-cartas-dos-presos-vao-ajudar-a-iluminar-a-caixa-preta-das-prisoes/
Já recebi algumas cartas de pessoas presas ao longo de minha carreira
como repórter. Quase nunca viraram notícias. Havia o argumento de que
eu poderia estar sendo usado pelos presos, o que era uma evidente
bobagem. Mas eram épocas complicadas, logo depois dos ataques do
PCC, quando os detentos eram pintados pelo Estado como espécies de Osama
Bin Laden pós 11 de setembro. O fato é que a criação desse clima
afastou os jornalistas de dentro dos presídios. Foi assim que eu e meus
colegas paramos de contar o que ocorria dentro das prisões, a não ser
quando se referia ao PCC, com informações que chegavam por intermédio
das autoridades cuja investigação parece se restringir às escutas
telefônicas.
Foi essa omissão forçada que permitiu às prisões se transformarem em
uma caixa-preta, onde vivem mais de 200 mil pessoas. Se considerar os
familiares dos presos, são mais de 1 milhão vivendo o cotidiano
desconhecido do sistema penitenciário. Trata-se de uma cidade do porte
de Campinas, que alguns acreditam formar uma realidade paralela, mas que
está totalmente interligada com nosso dia a dia. “Todas essas pessoas
merecem sofrer porque praticaram crimes”, vão dizer alguns. Esse é um
pensamento primário. Basta ver que o Primeiro Comando da Capital se
fortaleceu justamente porque havia essas sombras mal compreendidas. A
facção passou a ocupar o espaço abandonado pelo Estado, conquistando
legitimidade entre a massa carcerária, ao mesmo tempo em que organizava o
mercado de drogas em São Paulo e passava a fornecer para muitos estados
do Brasil.
O PCC ganhou força dentro e fora do sistema porque muitos acreditam
que é possível amontoar um monte de gente nos presídios e esquecê-los lá
dentro. Só que os efeitos colaterais foram se revelando com o tempo:
fortalecimento do crime e fragilidade do Estado. Há quase um ano São
Paulo bate recordes sucessivos de roubo, sem falar no crescimento
constante do mercado de drogas.
O jornalismo tem a obrigação de ajudar a lidar com o problema
mostrando ou discutindo o que ocorre nas prisões. Além de publicar
fotos, este blog vai divulgar o conteúdo de cartas de pessoas que estão
presas. Não se trata de dar publicidade a denúncias infundadas, mas de
dar vasão aos reclames feitos por presos cujos direitos são
desrespeitados. Muitos erraram e querem a reabilitação, oportunidade que
o Estado e a sociedade parecem se negar a conceder. Os gastos mensais
médios de R$ 2 mil por preso deveriam ser o bastante, mas esse dinheiro
parece se perder no fundo escuro da caixa-preta do sistema.
Como costuma afirmar a socióloga Julita Lemgruber, citando o
ex-ministro da Justiça inglês Thomas Hurd, trata-se da ”maneira mais
cara de tornar as pessoas piores”.
Seguem alguns problemas de dentro das prisões, que me chegaram por
meio de mais de 40 cartas. Também publico fotos inéditas dos presídios,
como a imagem abaixo, que mostra a superlotação em uma cela. É preciso
improviso para organizar os pertences. Os colchões são da espessura
mostrada na foto. Não vou dizer de onde são as fotos para preservar
minhas fontes. Se os juízes-corregedores e as autoridades dificultam a
entrada dos jornalistas nos presídios, que os presídios venham até os
jornalistas.
A maioria das cartas vem de Tremembé I e foram
escritas no começo de maio, antes do Dia das Mães. Trata-se de demandas
legítimas que devem ser observadas. A Pastoral Carcerária e a
Defensoria vão nos ajudar a checar a reclamação dos presos.
TREMEMBÉ I
1) Funcionários assediando sexualmente as visitas “com assovios,
olhares nas partes íntimas e palavras sexuadas”. Revistas humilhantes
aos familiares dos presos;
2) Falta água sempre. Não há água para beber, higiene pessoal. Quando
tem, a água é suja e causa diarreia, dá dor de cabeça e vômito. Direção
diz que bomba está quebrada. Será que a verba recebida para esse tipo
de serviço é usada?, questiona o preso;
3) Reclamações mínimas levam a direção ameaçar a levar os presos para “o pote” (castigo) ou para presídios longe da família;
4) Galpão onde os presos trabalham: há um cano de água estourado há
mais de três anos e da fenda do chão jorra grande quantidade de água
limpa, que vai direto para o bueiro. “Por que não dar essa água aos
presos em vez da água suja?”, questionam duas das cartas;
5) Em celas de 10 metros quadrados, onde antes cabiam no máximo dois
presos, hoje colocam seis. Nas camas não se pode nem sentar por falta de
espaço. Na hora da alimentação, o preso precisa comer de pé;
6) Não existe tratamento médico e dentário. Nas cartas, os presos
contam como tentam montar um plano odontológico por meio de pagamento a
dentistas e divisão das despesas com internos e famílias;
7) Proibido dar presentes aos filhos em datas festivas. Também é proibido às visitas ingressar com refrigerantes;
8) Revistas ao jumbo (produtos que os familiares são obrigados a
levar porque o oferecido pelo Estado é insuficiente) e às visitas tiram o
tempo de convívio com os detentos. Há mais de mil visitas e apenas duas
mulheres para fazerem a revista pessoal e duas para o jumbo. Visitas
chegam às 6h da manhã e só conseguem entrar na unidade às 12h;
9) Mortes por negligência médica;
10) Enfermaria com detentos despreparados. Faz pelo menos dois anos que falta médico e quatro pessoas morreram por causa disso;
11) Pertences das visitas somem;
12) Falta assistência jurídica e a burocracia da Justiça dificulta a
progressão de pena. Pedem semiaberto, por exemplo, demora meses na mão
do juiz. Quando retorna, é para afirmar que o preso esquecem de
preencher determinado item. O documento volta ao limbo burocrático;
13) Proibição de alimentos como milho, ervilha e salame, bolo sem
recheio na entrada, refrigerante, itens que são permitidos em outros
presídios;
14) Únicos remédios na unidade: Paracetamol em gotas ou Dipirona. São dados para todo tipo de doença;
15) Demora para entregar sedex e as cartas levam mais de 30 dias para chegar ao preso;
16) Agentes levam artesanatos feitos pelos presos embora e proíbem
que sejam feitas cortinas para o banho, que molha a cela e os colchões;
Penitenciária II Presidente Venceslau
1) Não tem estudo, trabalho, saúde e curso profissionalizante.
Benefício de pena é negado, afirmando-se que o preso não estuda nem
trabalha;
2) Exames criminológicos avaliam sentenciado em 5 minutos;
3) 4 horas de visitas, com funcionários vestindo toucas ninjas e armas. Visitas dentro da cela, sem parquinhos para crianças;
4) Presos buscam informações para montar ONG do tipo Afro Reggae para ajudar na ressocialização de presos;
Algumas dessas cartas são para as esposas. Quando percebe o futuro
encarcerado, longe da mulher e das crianças, alguns presos se derretem
em poesias e juras de amor, reconhecendo a importância da família e se
autopenitenciando pelas derrapadas do passado. Há espaço para
transformações, mas o Estado e a sociedade parecem se esforçar para
fechar todas as portas.
Publicarei novas cartas neste blog, conforme elas cheguem às minhas
mãos. Reclamações básicas, como a falta de espaço na foto acima,
que transforma o banheiro de 60 pessoas em depósito de alimentos. Está
enganado quem acredita que se esquecermos desse assunto, o problema
desaparece como num passe de mágica. São justamente as nossas sombras
mais escuras que precisam ser decifradas.